terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A crise e a legislação trabalhista no Brasil

Há quase 80 anos, o mundo se via diante daquela que seria a maior recessão da história mundial. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, foram desencadeadas ondas de desemprego, de falências e estagnação da economia.
Aquele momento trouxe alguns ensinamentos que puderam ser utilizados no decorrer da história e que hoje estão sendo reabilitados, depois de anos apegados na fé quase fundamentalista de que o mercado resolve tudo.
Um deles, e talvez o mais importante, foi o chamamento do Estado a intervir fortemente na economia, com políticas públicas de incremento em infraestrutura, possibilitando a criação de milhares de empregos.
Outro, não por coincidência, foi a aparição de normas para a proteção do empregado. O cenário atual, com a crise financeira que ameaça repetir os piores momentos daquela, também exige a atuação estatal com vistas à criação de condições para se evitar ou minorar os mesmos efeitos. Pelo menos é o que se tem visto até mesmo nos Estados Unidos, onde isso, na maior parte das vezes, é considerado uma heresia.
A intervenção estatal no Brasil, como no resto do mundo todo, tem, até aqui, beneficiado exclusivamente o capital, com a concessão de créditos em condições especiais, com a renúncia fiscal em favor da produção e do consumo e recursos para evitar a simples quebra das empresas.
São medidas corretas, mas que devem ter como fim em si mesmo a criação, quando não a preservação do emprego. Mas parece que o empresariado brasileiro e setores que sempre advogaram a doutrina do livre mercado não tem se conformado com apenas isso.
Eles não rejeitam, como alguns de seus congêneres americanos, a ajuda estatal, mas se negam a entregar qualquer coisa em troca. E vão mais longe: aproveitando-se de forma oportunista do momento, querem inserir no debate a questão da reforma da lei trabalhista, como se fossem as leis de proteção ao trabalhador as responsáveis pelos postos de trabalho extintos, e não uma crise de proporções mundiais.
Essa reforma teria o condão de permitir uma maior flexibilização nas relações de trabalho, notadamente para facilitar a dispensa, a suspensão do contrato e permitir, sem negociação coletiva, a redução de jornada e salário dos trabalhadores. Essa última já é possível, mas desde que haja intervenção do sindicato dos empregados, a quem cabe representá-los nesse momento.
Negar a existência da crise ou simplesmente imaginar que nada deva ser feito é querer viver alienado da realidade. Porém, mesmo considerando-se que ela já causa efeitos em nossa economia, não se pode simplesmente aderir a qualquer solução mágica ou simplesmente acreditar que muitas dessas demissões guardem, de fato, relação com o que ocorre no mundo.
Vejamos o setor bancário. Aqui não acontece o mesmo problema que em outros países, onde a especulação e a aposta desenfreada nos arriscados negócios virtuais quebraram instituições centenárias. Porém, aqui o setor bancário demitiu mais de mil pessoas no ano passado, segundo informações veiculadas em todos os jornais.
Há demissões em setores que vinham, até então, apostando claramente em um crescimento substancial e foram pegos de surpresa pela rapidez com que isso ocorreu. Mas há outros que passam a nítida impressão de estarem reagindo por antecipação, por precaução, como forma de se capitalizar às custas da extinção de postos de trabalho.
Por isso há que se condenar o oportunismo do discurso que quer rever a legislação trabalhista. Naquilo que é mais sagrado para o empregado, a jornada e o salário, nossa Constituição já autoriza a flexibilização, mas sempre com a negociação coletiva como condição. Logo, o que haveria mais para flexibilizar?
Somente essa condição, de forma que não se precisasse entregar nada em troca. Por isso, não é demagógico ou mesmo desarrazoado que se exija como contrapartida na negociação a manutenção do emprego por um determinado período.
Ou que a eventual suspensão do contrato seja acompanhada do pagamento da diferença entre o salário e o seguro-desemprego. Ou ainda, que também nesses casos seja mantido o emprego por determinado período. Nada disso é vedado pela legislação, mas a reação do empresariado é como se isso fosse uma aberração.
Também não é nenhum absurdo o governo atrelar a concessão de créditos, ajuda financeira e redução de impostos à manutenção ou criação de empregos. Nos Estados Unidos a ajuda econômica que o atual governo quer aprovar tem essa destinação.
Não se trata apenas de sanear as contas ou assegurar a distribuição de dividendos dos acionistas. Até a redução dos bônus dos executivos, que a rigor não deveriam receber nenhum, entra no pacote de negociação do Estado com a iniciativa privada. Não pode aqui ser diferente, afinal o empregado não pode ser considerado como mais um custo, uma mercadoria.
O Estado e os sindicatos dos trabalhadores têm o direito de verificar os números contábeis e financeiros das empresas que querem reduzir seus quadros, inclusive para verificar se isso não é abusivo.
A Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil ratificou e depois denunciou e agora quer ratificar mais uma vez, assegura que a empresa tem que justificar as dispensas em massa com provas de sua necessidade.
Afinal, aqui no Brasil está em vigor a Constituição de 1988 que afirma que o trabalho e a iniciativa privada tem valor social e os considera entre os fundamentos da nossa República. E entre as funções sociais da empresa está a de gerar empregos. Do contrário ela não cumpre os mandamentos constitucionais.
O que se espera, nesse momento de crise aguda, é que a sociedade absorva outra lição aprendida com a crise anterior. É necessário rever as relações trabalhistas, não para reduzir direitos, mas para repactuá-las, exigindo-se transparência nas negociações, participação dos empregados nas decisões e na gestão da empresa e solidariedade. É o mínimo que se espera quando se trata de relações entre integrantes da família humana.
(*) é juiz do trabalho e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Fonte: Valor Econômico, por Cláudio José Montesso (*), 17/02/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário